quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Apontamentos para uma Metodologia de Pesquisa do Teatro do Oprimido

quarta-feira, 6 de agosto de 2008
Texto de Anderson Zotesso do Grupo Adolescente de TO


Eleger uma poética teatral como objeto de pesquisa envolve um estudo complexo. Além da dramaturgia, interpretação, iluminação, cenografia, figurinos e sonoplastia já tão estudadas, descritas e desenvolvidas pelos teóricos e praticantes de teatro, trata- se da constante incorporação de outras artes e linguagens como a dança ou a música cantada ou instrumental – seja ela gravada ou ao vivo - e, recentemente, até projeções em vídeo e exposição de cenas capturadas durante a representação.

Somadas a isso, podemos considerar as experiências sinestésicas com a ativação de um ou até de todos os sentidos do corpo além do uso de espaços que vão desde o palco italiano – que aqui chamaremos de "tradicional" - até casarões, escolas, prisões, praças, ruas, associações de bairro e onde mais se queira dedicar-se à arte da encenação. É inegável a dificuldade de se delinear um recorte temático neste mar de possibilidades para daí extrair o corpus de um trabalho de pesquisa.

Poder-se-ia inferir que cada pesquisador – seja de que área for - fará sempre escolhas de alguns dados que obrigarão ao desprezo de outros. Tal idéia é bastante plausível, mas prestemos atenção a outros ingredientes do processo em que se constitui a obra teatral e que poderiam levar à necessária complementação deste raciocínio.
Coloquemos a questão de outra forma: Ao observar e descrever um objeto complexo, seria possível isolar os elementos que o compõem e estudá-los separadamente? É recomendável fazê-lo quando se tratar de séries culturais e dentro delas as linguagens, os códigos e suas possíveis decifrações e apropriações?

Faz-se necessário que recorramos a um cabedal teórico que possibilite uma análise mais ampla de tal objeto de pesquisa. Como fenômeno artístico, este se dá na cultura, portanto, não é algo estático, imutável; demanda análise, sendo esta encarada como o estudo de processos que ocorrem em temporalidades e espacialidades próprias e aí se encontra sua historicidade. Deste ponto vista, consideraremos um conjunto de elementos que interagem em determinado contexto.

No presente artigo pretendemos colaborar com o delineamento de algumas necessidades metodológicas para o estudo da Poética Teatral do Oprimido, desenvolvido por Augusto Boal, diretor e teatrólogo brasileiro.

Tal poética requer que seu pesquisador siga por caminhos sinuosos e acidentados. Sinuosos por sua polissemia e acidentados pela quantidade de relações que estabelece com outras áreas do conhecimento fora as que se dedicam às artes.

Como nos chama a atenção Iuri Lotman,os textos semióticos artísticos se diferem dos comunicativos por serem polissêmicos e geradores de sentido (Lotman, 1996), portanto estamos lidando com um objeto que se configura pela diversidade de interpretações e de incorporações (dentre elas as advindas do público como esmiuçaremos a seguir).

Não obstante, a consideração do texto como gerador de sentidos, elo da corrente hierárquica (consciência individual – texto - cultura) pode suscitar indagações. É evidente que o texto por si só não pode gerar nada: deve entrar em relações com um público para que se realizem as possibilidades generativas. (Lotman, 1996: 89)

O TO não só se assume como gerador de sentidos – por ser arte – como simplesmente não se aceita se não na relação com o público. Sem ele a obra perde todo sentido porque sua construção tem o objetivo de instigar a intervenção dos espectadores, que passam, portanto, a espect-atores em debate - intervenção lúdica e teatral sobre o conflito apresentado.

Deixamos claro que este deslinde metodológico a que nos propomos não encerra a verdade, mas visa preencher certas lacunas que temos observado na produção acadêmica brasileira, com destaque ao escasso material publicado.

A produção bibliográfica sobre Boal e o TO nos mostra algumas tendências a certo reducionismo. No caso do Brasil, podemos dividi-la em três grupos:
1 - Os livros sobre teatro brasileiro;
2 - As publicações de Augusto Boal e do CTO – Rio (Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro, coordenado por ele) e
3 - As monografias (dissertações ou teses) arquivadas nas bibliotecas das universidades.
Sobre o primeiro item, em linhas gerais, as escolas de Teatro tendem a enfatizar o período em que Boal integrou o Arena em São Paulo (de 1956 a 1971), com os Seminários e Cursos de Dramaturgia e montagens como Arena Conta Zumbi, Arena Conta Tiradentes e Revolução na América do Sul, entre muitas outras.

Ao dar quase exclusivo enfoque a esse período (e estudá-lo como história do Teatro brasileiro, por exemplo), as ementas isolam a produção de Boal ao período anterior a seu exílio e menosprezam sua posterior obra bibliográfica. Em alguns casos, recorrem a ela, mas como ferramenta e complemento e não como objeto de estudo.

Podemos inferir que isso acarreta na desconsideração do Teatro do Oprimido como válido para o estudo da arte teatral, por não ser praticado por dramaturgos, atores ou diretores profissionais, mas por qualquer pessoa que se proponha a expressar-se através da linguagem teatral fazendo uso do Arsenal do Teatro do Oprimido.

O sociólogo Boaventura de Souza Santos analisa este tipo de racionalidade como uma forma de produção da não-existência ou da monocultura do saber instalada e constantemente reproduzida em nossa sociedade ocidental:
"Consiste na transformação da ciência moderna e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética respectivamente. A cumplicidade que une as "duas culturas" reside no fato de ambas se arrogarem ser, cada uma no seu campo, cânones exclusivos de produção de conhecimento ou de criação artística. Tudo que o cânone não legitima ou reconhece é declarado inexistente. A inexistência assume aqui a forma de ignorância ou de incultura". (Santos, 2006)

A estética teatral ao qual aqui nos dedicamos se posiciona como crítica aos cânones aristotélicos da Poética e visa complementar o teatro brechtiniano.
A respeito do item 2, destacamos que é obvio que a bibliografia escrita por Boal é absolutamente relevante, mas não pode ser a única sobre sua criação, deve contar com colaborações de outras áreas do conhecimento que ampliem e critiquem os méritos e limitações do TO.

Reconhecemos a incontestável importância do Arena, mas ressaltamos que fechar o estudo deste autor a este período seria hipostasiá-lo. A obra do autor brasileiro continua sendo escrita e atualizada por ele, assim como ampliada e estudada por pesquisadores, teóricos e praticantes, nos mais de 70 países onde se conhecem suas técnicas.

É no Arena, por exemplo, que nasce a figura do Curinga, espécie de Mestre de Cerimônias das apresentações de Teatro - Fórum e Legislativo. As experiências do autor foram se acumulando e configurando práticas que são e continuarão sendo utilizadas, total ou parcialmente, tanto pelo CTO- Rio quanto por qualquer pessoa que entre em contato direto ou indireto com sua obra.

Entre 1973 e 1979, Boal escreve Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas, publicado no Brasil em 1980, livro que explica suas técnicas e objetivos como teatrólogo, diretor e ensaiador e as batiza com o nome que alude à Pedagogia do Oprimido, do educador Paulo Freire. O posicionamento crítico ainda era marcado pelo discurso da esquerda que sonhava com a implantação do socialismo e a revolução.

O problema de se analisar o Teatro do Oprimido é considerar este livro como o único produzido sobre o assunto e tomar as declarações decorrentes de um determinado contexto histórico de ditaduras no Chile e Argentina e de início da democratização brasileira como algo transplantável para qualquer tempo.
Comparemos duas afirmações de Boal:
1 - "A Poética do Oprimido é essencialmente uma Poética da Libertação: o espectador já não delega poderes aos personagens nem para que pensem nem para que atuem em seu lugar. O espectador se libera: pensa e age por si mesmo! Teatro é ação!
Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas não tenham dúvidas: é um ensaio da revolução!"(grifos do autor) (Boal, 1980).

2 - (...) E o Teatro do Oprimido não impõe nada. Ele oferece. Ele é um método para aqueles que querem ajudar. Não é um Jesus Cristo, não ressuscita lázaros, mas se a pessoa quiser fazer algo, pode ajudar. Não dá consciência, mas ajuda a pessoa a aumentar sua consciência. Naquela época a gente falava muito em conscientizar as massas. Isso não existe. Elas é que podem se conscientizar por si mesmas." (Revista Imprensa, fevereiro de 2008).

Apesar de o discurso ser construído ainda com forte terminologia marxista – a palavra conscientizar, por exemplo – observa-se um olhar mais individualizado do autor que sai do macrocosmo da sociedade com um todo e se volta para o indivíduo e suas tensões dentro do tecido social e os conflitos que venha a ter consigo mesmo.

A preocupação de Boal com o indivíduo surgiu quando da sua transferência para a Europa, onde não havia ditaduras e "opressões objetivas" como a violência policial ou necessidades básicas como alimentação, saúde e educação, mas "opressões subjetivas" provenientes de problemas psíquicos decorrentes de círculos sociais como a família e a religião. Citamos esse dado para apontar para outra necessidade metodológica do objeto em questão: O psicodrama foi incorporado em grande medida ao desenvolvimento do Arsenal do Teatro do Oprimido.

A esse respeito destacamos que o investigador deve estar atento ao aspecto terapêutico de se praticar Teatro do Oprimido. Os Curingas têm de estar atentos aos avanços pessoais que cada ator realiza e isso nem sempre se vê na apresentação da obra, mas na relação do grupo interna e externamente, na cooperação, nas preocupações compartilhadas no empenho que põem às suas atividades e nos vínculos afetivos que aí se estabelecem.

Colocar em fórum uma situação psíquica traumática pelo qual passou um ou mais integrantes de um grupo teatral vai além de seu resultado fruitivo, resgata a auto-estima e lança alternativas e questionamentos a todos os que participam no processo.

Por último, com relação às teses e dissertações, há estudos em áreas como sociologia, pedagogia, comunicação e psicologia, mas o alcance deles fica restrito aos meios acadêmicos, caso não sejam publicados, como vem acontecendo. Por outro lado, seus autores-pesquisadores devem ultrapassar a mera busca de resultados classificatórios e titulações e produzir obras que possam ser levadas à publicação pela contribuição acadêmica e social que apresentarem.
(ler na Integra no Blog Do GATO http://www.grupoadolescentedeto.blogspot.com/)

0 comentários:

 
BLOGÃO da Rede de Teatro do Oprimido ◄Design by Pocket, BlogBulk Blogger Templates