quarta-feira, 6 de maio de 2009

À BOAL ...

quarta-feira, 6 de maio de 2009 0

DEBATE ABERTO

Boal está vivo!

Boal detestava a mediocridade, o servilismo e o silêncio dos que fingem que não vêem o que se passa. Era um homem direto e franco, sem jamais perder a ternura dos bons. Certamente, depois de morto, será ainda mais reconhecido, na nossa trágica tradição de valorizar mais os mortos do que os vivos.

Luís Carlos Lopes

Canalhas de todo o mundo não fiquem alegres. Boal está vivo! Vocês que torturaram o seu corpo, que infamaram seu trabalho, jamais venceram ou vencerão. Podem causar danos, adiar projetos, mas não conseguirão impedir que exista espaço para gente talentosa e com forte postura ética. Pobres de vocês, que jamais serão conhecidos pela honestidade e pela solidariedade com os demais membros da espécie humana.

É verdade que ele se foi, que não mais o veremos no plano físico, entretanto, ele jamais morrerá no coração de todos os oprimidos da face da Terra. Os seus 78 anos bem vividos foram suficientes para ele dizer a que veio e deixar um legado imortal de um brasileiro, carioca, suburbano, revolucionário e doce como goiabada.

Vocês que nunca o compreenderam e nem fizeram questão de melhor conhecê-lo, não sabem o que perderam. Pessoas como ele não existem em cada esquina. Simples, profundo e companheiro de todos que possuem o espírito livre e a consciência no lugar. Boal jamais foi arrogante como vocês. Nunca disse que sabia mais do que ninguém. Não precisava de marketing pessoal e nem de tietagem comercial.

Sua presença bastava e se impunha por si só, em tudo o que fazia no Brasil e no exterior. Deixou uma legião de admiradores e formou gerações de pessoas interessadas em contribuir para a construção de sociedades mais justas. Sua fama correu mundo, bem como o respeito pelo seu trabalho. Nada pedia pelo que fazia. Recebeu até poucas homenagens, considerando a grandeza de sua intervenção no mundo da vida.

Certamente, depois de morto, será ainda mais reconhecido, na nossa trágica tradição de valorizar mais os mortos do que os vivos. Não importa. Ele era o próprio teatro, e ele continuará a usar suas peças e, sobretudo, seu método e seus infindáveis ensinamentos. Estes retiravam material da alegria de estar vivo e de olhos abertos. É verdade, Boal detestava a mediocridade, o servilismo e o silêncio dos que fingem que não vêem o que se passa. Era um homem direto e franco, sem jamais perder a ternura dos bons.



Luís Carlos Lopes é professor.


O filho do padeiro e a revolução


Em uma época na qual a arte se identifica e se organiza em tendências de temporada, será cada vez mais raro encontrar um artista cuja tendência radical na direção da justiça é obra de uma vida inteira. Augusto Boal construiu uma carreira pontuada muitas vezes por lances decisivos, não apenas pessoalmente, mas para a história do teatro brasileiro. Por meio de sua obra, o andar de baixo finalmente vem à luz e personagens como operários, cangaceiros e jogadores de times de várzea ganham o palco.


O artigo é de Kil Abreu.
Kil Abreu (*)


Filho de um padeiro português que chegou ao Rio de Janeiro por se recusar a servir como soldado em uma guerra com a qual não concordava e de uma certa senhora que abandonara o primeiro noivo praticamente no altar para casar, por decisão e gosto, com um “aventureiro”, Augusto Boal aprendeu desde logo que o mundo pode ser mudado, bastando para isso decisão e coragem. Toda a sua invenção no teatro parece se basear nesta fé sobre o efeito da ação do homem no mundo, que não é apenas um lance retórico, como no teatro burguês, e deve ser encontrada nos motivos da vida ordinária. Foi assim que ele construiu uma carreira pontuada muitas vezes por lances decisivos, não apenas pessoalmente, mas para a história do teatro brasileiro.


Convidado ao então promissor Teatro de Arena, em 1956, empresta ao grupo os conhecimentos aprendidos, de encenação e dramaturgia, em uma recente temporada nos Estados Unidos. Principal ideólogo nos caminhos de uma cena preocupada em com as contradições da sociedade, é Boal quem intui que um teatro novo, com assuntos ainda não levados ao palco, pede também uma cena nova, com dramaturgia própria e um repertório técnico e artístico que dê conta de suportar a representação da realidade em chave crítica. Introduz o método de Stanislávski, que havia estudado no Actor's Studio, com vistas ao naturalismo que seria de grande valia para a primeira fase de renovação da cena que o Arena promoveria. O andar de baixo finalmente vem à luz e personagens como operários, cangaceiros e jogadores de times de várzea ganham o palco. Era a hora da representação dos temas nacionais, quando dirigiu, entre outros, Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Viana Filho (1959), espetáculo que dá seguimento a Eles não usam Black-tie, peça de Guarnieri (1958) dirigida por José Renato.


Ainda em 1960, de mãos dadas com os ensinamentos vindos de Brecht e o seu teatro épico, Boal escreve Revolução na América do Sul , uma mistura de teatro de agitação, tradições populares e revista musical. O espetáculo tem direção de José Renato e afirma com grande inventividade as marcas que pautariam toda a sua produção posterior: de um lado, o espírito criativo iconoclasta, experimental e, de outro, a certeza de que a experiência estética não é mero formalismo, é meio para a discussão urgente de algum aspecto da vida em sociedade. O período que vai de 64 a 71, contabilizada a grande sede de justiça social provocada pelo golpe, é o período da resistência que inclui ações em várias frentes: alinhado ao CPC da UNE, já na ilegalidade, Boal dirige, no Rio, o Show Opinião, com Zé Ketti, João do Vale e Nara Leão. Em São Paulo cria, com Guarnieri e Edu Lobo, o musical Arena Conta Zumbi, cuja estrutura modelar seria aproveitada em outras montagens (Arena conta Bahia, Arena conta Tiradentes, Arena conta Bolívar). O propósito é evidente: fazer, através de personagens históricos ligados às lutas populares, o cotejamento com a realidade atual do país, apontando a necessidade de mobilização e de mudança. Mas não é só.


Para que o efeito crítico seja efetivo os espetáculos trazem, entre outras inovações, o “sistema coringa”, uma técnica através da qual todos os atores interpretam todos os personagens e a fábula é conduzida por um narrador, que à maneira brechtiana faz a mediação crítica e chama a platéia a acompanhar as cenas à luz da razão.


É ao fim deste duro período, quando finalmente será exilado depois de passar por tortura e de ver suas montagens censuradas, que está o nascedouro da experiência que consagraria Boal como um dos artistas brasileiros mais importantes do mundo. É quando surgem os princípios que vão orientar as técnicas que mais adiante serão aplicadas ao seu Teatro do Oprimido. É criado o Núcleo Independente, oriundo do Arena, que teria ação importante na periferia de São Paulo nos anos 70. O primeiro espetáculo chama-se Teatro Jornal 1a. edição e inspira-se no trabalho de um grupo de agit-prop americano dos anos 30, o Living Newspaper. O procedimento fundamental está próximo do que mais tarde seria o Teatro Fórum: os atores lêem as notícias do dia e criam situações cênicas para debater pontos de vista e lançar novos olhares sobre o noticiado.


Expulso do seu país, Boal prossegue com seu trabalho no exterior, primeiro na Argentina, onde desenvolve a estrutura teórica dos procedimentos do teatro do oprimido. É quando passa a sistematizar e a praticar uma revolução verdadeira. Simples como o são as coisas necessárias e urgentes, o Teatro do Oprimido tem como palco qualquer lugar onde um grupo de cidadãos possa se reunir e tem como fiinalidade dar voz, através da representação simbólica do mundo, aos que em geral permanecem calados. Com uma técnica engenhosa, que leva aquele que seria o espectador do teatro burguês ao lugar de atuante no curso dos acontecimentos, é uma forma teatral que desmistifica a coisa estética para ver a beleza no exercício de autonomia do sujeito, quando este é chamado a intervir no andamento da ação e a dar sentido político à sua própria existência.


Recentemente o Teatro Legislativo, gênero derivado do TO e surgido durante o mandato de Boal como vereador no Rio de Janeiro, foi responsável pela criação de treze Leis municipais, todas nascidas da discussão comunitária, em encontros nos quais a população apresentou, através do teatro, as suas demandas.Nomeado pela Unesco Embaixador Mundial do Teatro em março deste ano, Boal deixa seus livros traduzidos em vinte idiomas e centros de teatro do oprimido espalhados por mais de setenta países.


Nesta semana de homenagens póstumas não será demais lembrar uma fala, na apresentação da sua autobiografia, em que ele dizia que a idéia de se autobiografar é algo quase imoral, pois que o importante é a obra, não o homem. Mas o fato é que seu gênio artístico fará falta, sim, e tende a parecer cada vez mais uma anomalia, um idealismo ingênuo – como, aliás, está tratado já subliminarmente, nas falas de despedida, pela grande mídia e por vários dos seus companheiros de jornada, hoje rendidos ao mercado do entretenimento.


Em uma época na qual a arte se identifica e se organiza em tendências de temporada, será cada vez mais raro encontrar um artista cuja tendência radical na direção da justiça é obra de uma vida inteira.


(*) Kil Abreu é jornalista, crítico e pesquisador do teatro. É curador do Festival Recife do Teatro nacional e coordena o Núcleo de Estudos do teatro contemporâneo da Escola Livre de Santo André.
 
BLOGÃO da Rede de Teatro do Oprimido ◄Design by Pocket, BlogBulk Blogger Templates